A essência das entrelinhas
“Adolescentes e adultos
frequentadores das salas de cinema, que se sentem respaldados pela auto
permissividade de que tudo podem – a despeito dos limites de seus deveres para
com o próximo e de seus direitos, que fazem das salas de cinema uma extensão de
suas casas, emanam toda a sorte de ruídos enquanto abrem seus saquinhos de
guloseimas, comentam em voz alta atormentando os demais espectadores, enviam
mensagem pelos seus smatrphones durante a projeção – e que, por mera ignorância
dos fatos, elegem um suposto filme do gênero terror para gritar, pular da
cadeira, rir das mentiras e debochar dos protagonistas, aproveitando para pôr
em prática o seu currículo de incivilidade.”
Definitivamente, essa é a classe de
público à qual não deve ser indicada a perturbadora produção cinematográfica “A
Bruxa” – dirigida por Robert Eggers que, genialmente, consegue transformar cada
sessão, em um exercício de compaixão àqueles que só comparecem para enxergar o
óbvio de fácil assimilação e descartar a essência das entrelinhas.
Na Inglaterra de 1630, uma família
composta por pai, mãe e cinco filhos, encontra seu novo lar próximo a um bosque
isolado, após ser expulsa de uma comunidade cristã à qual fazem parte, por não
se enquadrar nos dogmas exigidos por aquela sociedade. Os acontecimentos subsequentes
necessitam de respostas que envolvem os membros daquela família junto aos seus
medos e aos seus credos.
“A Bruxa” incomoda por não se moldar
no gênero “pavor-clichê” e faz com que boa parte dos expectadores abandonem a
sala de projeção, ao final da sessão, conclamando palavras de desagrado contra
a produção, frente à frustração de suas expectativas ao terem optado por um
filme, cuja classificação vai muito além daquilo que se pode esperar de um
filme de horror convencional.
O terror de Eggers não está visível
aos olhos dos angustiados, dos depressivos, dos violentados, dos religiosos,
dos idealistas, dos nefastos e, muito menos, das famílias supostamente
convencionais. Seu terror está na essência, é cravado e latente, sempre que se
depara com intolerância religiosa, de quem pensa diferente e de quem têm a
consciência de que a família é a base estrutural de tudo, seja em prol do bem
ou do mal.
“A Bruxa” é bela ao fazer com que,
mesmo depois da sessão, seja levada consigo a essência da Rainha de Copas e do
Coelho Branco de Alice, de Chapeuzinho Vermelho e da maçã envenenada da Branca
de Neve, não como mera fantasia voltada para um público, supostamente infantil,
mas como instrumento capaz de definir uma lógica, através da qual nossos
rancores, raiva e falta de perspectiva transitem de maneira poética diante da
hipocrisia instalada nos seres, antes mesmo de nascerem.
A partir de uma fotografia
deslumbrante, trilha sonora e sonoplastia primorosa, “A Bruxa” é capaz de
provocar na plateia, a cada cena, a falta de pudor dos religiosos, dos ateus e
dos impressionáveis, como seres complexos e incoerentes, sem controle e sem
caminho certo diante de suas vidas travestidas em bosques impenetráveis que não
é, e que jamais será o foco de suas resposta sobre a razão de dar continuidade
à vida e de manter-se vivo.