Uma densa atmosfera surrealista
Um quebra-cabeça composto por onze textos do dramaturgo
Romeno Matéi Visniec – reconhecido pela contemporaneidade e pela “Ionesca”
influência do gênero teatro do absurdo em seus trabalhos – é arquitetado pela
ousada direção de Fernando Philbert. Os textos de Visniec discorrem sobre temas
do cotidiano relacionados à condição humana – o sentido da vida e da morte, o
valor de cada ato, a tensão entre indivíduo e a sociedade, as crenças
religiosas, políticas e afetivas, que questionam o homem enquanto ser solitário.
Em meio a uma densa atmosfera surrealista, Philbert transforma o palco em uma
galeria de arte quadridimensional e sensorial, traveste a poesia em realismo
fantástico e apresenta o espetáculo “A Grande Ressaca”.
A força presente em cada um dos personagens demanda
interpretação marcante, à altura da complexidade do ser contida no
elementarismo de cada papel, amparado pela trupe que se entrega ao limiar da
insanidade contida nos absurdos os quais proferem e desempenham – Allan
Medeiros, Deborah Silveira, Djavan Fernandes, Gabi Soledade, Gonzalo Martinez
Cortez, Lucas Gonjú, Marcelo Ferreira, Matheus Niquelatti, Nanda Teixeira,
Otávio Tardelli, Relise Adami, Tadeu Azevedo.
Assinado por Philbert, o projeto cenográfico prioriza um
andaime sobre rodas que, generosamente, compartilha breve momento no palco com
uma cadeira e um telefone de baquelite preto do meado do século XX. De resto,
adereços como guarda-chuvas, manequins, máquinas fotográficas, um biciclo,
dentre outros objetos remontam à arte pictórica inspirada em instinto, em
automatismo e em subconsciente quase circenses. Como em um turbilhão que
envolve os personagens e os olhares atentos da plateia, capaz de transportar
todos de uma dimensão para outra em segundos, o rodopio do andaime sobre rodas,
embalado pelos solos de guitarra de Djavan Fernandez – que, juntamente com
Philbert e Lucas Gonju, são responsáveis pela selvageria presente na trilha
sonora do espetáculo – define a descontinuidade das onze cenas “linkadas” por
linhas sinuosas, formas e cromatismo nos moldes dos delírios abstratos
“Mironianos”. Ao encontro de tudo isso vão o dramático e contrastante desenho
de luz de Wilson Reiz e o transitório figurino de Maria Duarte que humaniza e
aglomera as referências individuais e coletivas conectadas à guerra, ao
abandono e ao risco fronteiriço da sociedade.
Em meio a pessoas solitárias e perdidas – que não se fazem
compreender, franco-atiradores prestes a matar civis a despeito de suas faixas
etárias e à violência física e burocrata que impedem uma mãe de atravessar, com
sua filha, a fronteira de regresso à sua casa – é criado um clima familiar
capaz assombrar os mais fantasiosos contos de fadas ou assegurar o mundo em que
vivemos, sem crendices religiosas. Na sala de espetáculos, a divisa entre palco
e plateia se desfaz fazendo dos espectadores parte integrante daquela trupe e
com ela compartilham o sentimento de estarem desempenhando o papel de palhaços,
nem sempre engraçados. Coletivamente, assumem corajosa mas, passivamente, a
função de sentinelas, sempre no aguardo da chegada de uma nova grande ressaca,
à beira de um píer.