Ultrapassa a simplicidade do existencialismo e se embrenha em terrenos onde mentiras carecem de significados para se tornarem verdades concretas
A geometria de um relacionamento
familiar, não tão incomum – um casal e sua filha, o patriarca da família e
um amigo que faz parte do passado do casal – com capacidade de potencializar os
meandros que conduzem a concepção literária. A inspiração arrastada à expiração
temporal, cuja indefinição do prazo fica por conta dos esforços da escritora na
tentativa de desatar os nós do passado. A negativa diante da compreensão da
legitimidade dos papéis desempenhados na vida real e a consequente entrega de
um esboço criativo da ficção, de sua autoria, ao futuro leitor.
O espetáculo “Contracapa” ultrapassa
a simplicidade do existencialismo e se embrenha em terrenos onde mentiras
carecem de significados para se tornarem verdades concretas. Ao idealizar a
história, Rócio Durán expõe a sua espontaneidade reflexiva contemplando
impulsividade e potencial calculista que priva a dramaturgia – criativamente assinada
por Suzana Nascimento – de qualquer possibilidade de desempenho involuntário
por parte do elenco. O fluxo e o refluxo, instrumentalizados pela direção geral
de Priscila Vidca, fazem dos personagens dóceis instrumentos em mãos hábeis que
os guiam no processo da realização de um projeto – no caso específico, um
livro. A espontaneidade dos personagens é transmitida ao espectador da mesma
forma que é meticulosamente capturada e traduzida pela trilha sonora de
Federico Puppi e Gastão Villeroy, que realizam, sem muito esforço, o
encantamento de toda a plateia pela criação de um livro. A complexidade que
reside na essência de cada papel é mutuamente compartilhada – em consequência
da interdependência de todos daquele núcleo – pelo coeso elenco formado por
José Karini, Rocio Durán, Roberto Frota e Saulo Rodrigues. O dualismo entre a
ficção e a não ficção, traduzido sob a forma de inúmeras camadas temporais e
presenciais diante da plateia, são
viabilizadas pela dobradinha formada pela simplicidade e pela eficiência
contempladas na concepção cenográfica de José Dias – que rege as regras da
imaginação criadora, a partir da qual os grandes segredos são deflagrados; e
pela riqueza cromática e intensidade do fluxo luminoso orquestrados pelo
desenho de luz de Paulo Denozot – que banha o palco de sensualidade em alguns
momentos. Passível de ser analisado a partir das entrelinhas, o institucional
totalitário e enigmático figurino desenhado por Desirée Bastos, contempla
marcas quase hieroglíficas, em sutis alusões ao formato ditatorial de
comportamento do patriarca e à profissão literata de sua filha – remetendo aos
marcadores de texto para os que são da família.
Embora não tenha sido levado ao público, o segmento da
história que define as razões pelas quais o casal se entregou ao desejo mútuo e
estabelecer a configuração familiar que perdura até o momento presente dos
personagens, é possível responsabilizar a postura do patriarca pela hibernação
das evidências, um dia responsáveis por aquela atração e que, ao longo do
tempo, passou a dar lugar a cobranças e constrangimentos em meio a uma relação
amparada pela inércia. Omitindo tal hipótese, o espetáculo “Contracapa” concede
autonomia para que o espectador conjecture toda uma gama de possibilidades de
finalização da história, de forma entusiasmante e sem fundamentar a paixão, mas
abrindo um espaço para a reflexão sobre a mesquinhez que age em nome de um amor
incondicional.
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