Fala sobre a mulher, sobre a pobreza, sobre a cor da pele,
sobre a igualdade, sobre a diversidade, sobre a resistência feminina, sobre as
perdas e, sobretudo, sobre as conquistas.
Uma criança nascida em uma favela carioca, feliz, apesar de
pobre e de ter que carregar latas d’água na cabeça, por sobrevivência. Uma
menina compelida pelo pai a largar os estudos e a se casar com um homem já
maduro e que a submetia à violência doméstica. Uma ainda menina que dá à luz um
garoto cuja vida foi interrompida por conta de enfermidade. A mesma menina, que
na busca pela cura da doença de seu filho, participa de um programa no
auditório de uma grande emissora de rádio, sendo vitimada moralmente pela
arrogância de seu apresentador. Uma adolescente que perde seu segundo filho
para a fome que se impõe aos habitantes do “planeta” em que nasceu. Uma jovem
adulta que enviúva e, com cinco filhos para criar, não teve outra saída senão
trabalhar como doméstica. Uma mulher que jamais declinou do seu propósito na
vida que era cantar.
Sete fases de uma vida que se desdobra em sete vidas – um
breve prólogo do espetáculo biográfico “Elza”.
O extremo sofrimento, contido na história de vida de uma das
maiores cantoras do Brasil – Elza Soares – conta com a estruturada direção de
Duda Maia, que não concebe a possibilidade de transformar o musical em um
melodrama lacrimejante. Muito pelo contrário, Maia presenteia o espectador com
um testemunho de vida marcado pela garra e pela luta, para muito além da
tristeza.
“Elza” fala sobre a mulher, sobre a pobreza, sobre a cor da
pele, sobre a igualdade, sobre a diversidade, sobre a resistência feminina, sobre
as perdas e, sobretudo, sobre as conquistas. No palco, treze mulheres – sete
notáveis atrizes e cantoras – Janamô, Júlia Dias, Késia Estácio, Khrystal, Laís
Lacôrte, Verônica Bonfim e Larissa Luz – desafiam o espectador ao desnudarem
todas as mulheres que Elza representa; seis explosivas musicistas – Antonia
Adnet (vilões, cavaquinho e voz), Georgia Camara (bateria e percussão), Guta
Menezes (trompete, flugelhorn e gaita), Marfa Kourakina (baixo), Neila Kadhí
(programações, pandeiro, guitarra e voz) e Priscilla Azevedo (teclado, sanfona,
escaleta e voz) escoltam as sete “Elzas” e potencializam a essência do
espetáculo, sob a atenção e a emoção de uma plateia delirante.
O encantador texto de Vinícius Calderoni expõe ao público,
sem o menor esforço, os tributos humanos e artísticos da primeira mulher
brasileira a puxar um samba enredo. A beleza e a sensualidade furiosas que
afloram da carne negra de cada uma das sete Elzas que representam Soares no
palco são adornadas, de forma precisa e personalizada, pelo figurino de Kika
Lopes e Rocio Moureque e pelo visagismo de Uirandê de Holanda. Definindo uma
atmosfera mixada em meio à bossa, ao samba e à contemporaneidade, o cenário de
André Cortez joga com o simbolismo, as marcas da trajetória de Elza Soares desde
a sua infância até os dias atuais, permitindo a concepção de um desenho de luz
cênica, por Renato Machado – que passa ao largo dos hiatos depressivos nos
quais a vigorosa forte biografia poderia mergulhar a plateia – de tal forma a
ofuscar as amarguras e as tristezas e a iluminar a voz da mulher de pele preta
que clama por deixarem-na cantar até o fim. No embalo da retrospectiva da filha
do operário tocador de violão, consagrada a cantora do milênio em 2007 pela BBC
de Londres, é deflagrado um amistoso duelo entre a potente sonoridade das vozes
que representam a voz da mulher do fim do mundo – em franca sintonia com a
transformação da obra musical escrita em arranjos inebriantes sob os arranjos
assinados por Letieres Leite – e o extasiante desenho de som Gabriel D’Angelo,
atualizando o que já é de vanguarda, atingindo, em cheio, o leque de gerações
que compõem os ainda crescentes admiradores de Elza Soares.