Um
resumo de todas as misérias e fracassos da raça humana
A falta de fé na humanidade, o fracasso de uma sociedade e a
ilusão da fé religiosa podem ser considerados o tripé que sustenta espetáculo
“Dogville”, expondo, de forma conseqüente e articulada, um resumo de todas as
misérias e fracassos da raça humana.
A adaptação do filme de Lars Von Trier para os palcos
conserva convenções estéticas da narrativa, própria de teatro filmado,
amplificando os detalhes do universo mesquinho das intrigas, das invejas, dos
preconceitos e dos julgamentos – uma inusitada interpretação de Zé Henrique de
Paula que traduz, através de sua direção, a essência de “Dogville” em algo
concreto, familiar e muito próximo a cada um dos espectadores. Assumindo um
paralelismo ao roteiro original do filme, dividido em capítulos, os atos do espetáculo
são precedidos por um prólogo pelo narrador incorporado pelo ator Eric Lenate,
que apresenta os seguintes personagens no primeiro ato, interpretados por um
elenco irretocável que assimila a força presente nos diversos papéis: Grace
(Mel Lisboa), Chuck (Fábio Assunção), Vera (Bianca Byington), Tom Edison
(Rodrigo Caetano), Martha (Anna Toledo), Ben (Marcelo Villas Boas), Sr Henson (Gustavo Trestini), Liz (Fernanda
Thuran), Bill Henson (Thalles Cabral), Sra Henson (Chris Couto), Thomas Pai
(Blota Filho), Jack McKay (Munir Pedrosa), Ma Ginger (Selma Egrei), Glória
(Fernanda Couto) e Jason (Dudu Ejchel). Uma trupe que induz o olhar do
espectador para muito além daquela pequena comunidade – sua paisagem, suas
montanhas, até mesmo, sua cidade vizinha.
De forma distinta à condução na versão cinematográfica, na
qual a ação se passa sobre um cenário em 2D, traçado em branco sobre um fundo
negro – de forma tão didática quanto a escrita de giz sobre uma lousa escolar –
na versão assinada por de Paula, para o teatro, o cenário desenhado por Bruno
Anselmo se impõe com eficiência, a despeito de sua simplicidade, ousando
projetar o caos em telões com dimensões proporcionais às dores, às dúvidas e às
inseguranças dos personagens de uma vila chamada Dogville, habitada por pessoas
simples, com anseios modestos e sem nenhuma pretensão de mudança. Pessoas com
escassos contatos com o mundo exterior, isoladas segundo limites que lhes são
impostos, até a chegada de uma forasteira que muda, substancialmente, a rotina
do pequeno vilarejo que, antes com ares de felicidade idílica, dá lugar à
verdade por detrás das nuvens densas, fúnebres e tenebrosas do ser.
Ao revelar a verdadeira identidade do vilarejo, o desenho de
luz de Fran Barros acolhe não só os habitantes, mas também o espectador que,
como uma ave de rapina à espera de uma carnificina, é poupado em meio à
penumbra voraz que contribui no esmagamento da identidade da protagonista e sua
desumanização. O entrelaçamento do real com o irreal, durante todo o
espetáculo, é subvertido pelo figurino, com ares surrealistas, assinado por
João Pimenta, que altera a percepção padrão de que a roupa faz o monge. O
visagismo intimista de Wanderley Nunes enfatiza a dramaticidade e a tensão
necessária junto aos personagens. A atenuação da atmosfera cênica na qual a
história se insere, fica por conta da trilha sonora de Fernanda Maia, que
ampara o espectador de tal forma a não permitir que também seja aprisionado em
Dogville e permaneça inerte no tempo, juntamente com seus habitantes vítimas de
amarguras e solidão, em meio à mediocridade e imersos em torpor, vitimados pela
cegueira e que não se reconhecem como indivíduos.
A Vila do Cão, onde o instinto animalesco do poder camuflado
em aparências e declarações de amor e de zelo ao próximo, tem como preposto o
algoz que açoita e flagela, respaldado pelo nome de Deus e pela intenção da
prestação do bem a toda a humanidade. “Dogville” acontece em plena década de
1930, em meio à miséria causada pela Grande Depressão e à sorte da violência
gângster – uma história repleta de similaridade aos tempos atuais, em que Deus
está acima de todos e “Dogville”, apesar de tudo que já foi vivido, acima de
tudo.