Um manifesto poético e cíclico sobre o processo de (re)existir
Lotzse “Excelentes Exceções”: Cicatrizes de Som e Silêncio | Música
Excelentes Exceções, o disco de estreia de Lotzse, surge como um manifesto poético e cíclico sobre o processo de (re)existir. Em um jogo sinuoso entre a arte sonora e a visual, a paulistana que antes se dedicava às galerias de arte agora se lança no universo musical com a delicadeza e a coragem de quem compreende que a arte é, essencialmente, um movimento de reconfiguração do ser. O álbum nos entrega uma intimidade em constante evolução, um diálogo interno entre o desejo de ser e de se perder, entre o que é e o que poderia ter sido.
Se há algo que Excelentes Exceções deixa claro, é a complexidade da relação da artista com seu próprio passado e seu futuro. O álbum flui como um espiral filosófico e existencial, onde as canções se sobrepõem e se repetem, como o ouroboros, a serpente que se engole, tentando se reinventar sem jamais se desfazer de sua origem. Cada faixa é uma pausa, uma respiração, uma tentativa de compreender o inconsciente. A artista não busca respostas fáceis, mas sim propõe questões profundas sobre a identidade feminina, as relações familiares, o amor não romântico e a reconciliação consigo mesma.
A introdução do álbum, com a faixa "mvxs", reflete a admiração da cantora por um ancestral de promessas cumpridas. É um prenúncio de que as "excelentes exceções" do título são, na verdade, as verdades pessoais que Lotzse exibe com uma simplicidade quase dolorosa, ainda que imbuída de uma fragilidade poderosa. Ao citar Nietzsche, ela se coloca como uma espécie de herdeira de um legado filosófico e humano que transcende o tempo, chamando para a própria missão de "manter as promessas da vida". Esse processo de internalização da arte e do pensamento, espelhado na relação com o avô e nas relações familiares em "filhas, mães e avó", exibe uma profunda reverência pelo que foi, mas também uma necessidade intransigente de se reinventar no ato da criação.
As melodias de Excelentes Exceções não são meros veículos sonoros, mas escavações do íntimo de Lotzse. "Brilha mais", com sua melodia leve, parece flutuar como uma lembrança dourada das lutas femininas, enquanto "marémobilia" reflete o impacto da onda de memórias que se desfazem na areia do tempo. Cada canção é uma tentativa de capturar o efêmero, de manter aquilo que já se foi, como em um quadro fugidio que só pode ser tocado com a pontinha dos dedos.
"Revérbero" e "19barra20" surgem como marcas de uma resistência que não nega a dor, mas a transfigura em ação. A artista, como um cronista de sua própria transição, convoca o ouvinte a revisitar o distanciamento da pandemia, mas também a redescobrir a força que emerge após o isolamento. A obra ganha peso quando, no final, Lotzse se rende à tradição e reinventa "Maria, Maria", de Milton Nascimento e Fernando Brant, com a leveza de quem está finalizando um ciclo com o poder de uma canção que ecoa pela história das mulheres.
O que Excelentes Exceções nos oferece, em última análise, é uma experiência profundamente existencial e estética, onde o tempo se dissolve, o conflito se transforma em arte e a artista se (re)encontra na ciclicidade de sua própria busca. O álbum é um espelho fragmentado onde cada pedaço reflete uma versão diferente da artista, da mulher, da filha, da amiga, mas, acima de tudo, reflete sua eterna busca por um sentido que se construa a partir daquilo que foi perdido e reconfigurado.
Lotzse não só é uma excelente exceção, mas também a própria exceção que desmantela e reconstrói as convenções da arte, da música e da experiência humana. Cada canção é um ato de coragem e uma reafirmação de que a arte, quando é genuína, sempre exige um salto no desconhecido.
Por Paulo Sales
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