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O Mito do Mito de Rita Lee: Ecos da Eternidade | Crítica | Livro

Desafiando o Fim com a Lâmina da Insubmissão

O Mito do Mito de Rita Lee

O Mito do Mito de Rita Lee: Ecos da Eternidade | Crítica | Livro


O que Rita Lee oferece em O Mito do Mito não é simplesmente um livro, mas uma cápsula do tempo fabricada com suor, rock e uma medida generosa de autossabotagem. Ao desafiar as expectativas que a sua própria morte cria sobre sua obra, Rita inverte as regras do jogo e, ao mesmo tempo, as põe em xeque. Sua frase "Minha única condição é que só saia depois de morta. Artista morto vale mais", uma afirmativa tão sedutora quanto inquietante, pode ser lida não como um capricho, mas como uma reflexão perspicaz sobre a natureza da imortalidade artística. E talvez ela tenha razão. Morta, ela transcende — em vida, não bastava ser artista, era necessário ser um mito.


É curioso, mas, ao explorar os recônditos da sua própria psique através da autoficção, Rita se recusa a ser tomada apenas pela aura mitológica que a cerca. A tentativa de separar-se de “meras coincidências com fatos reais” é um gesto calculado de distanciamento, como quem luta contra as amarras da biografia imposta por um mundo sedento por explicações fáceis. Em um campo literário que frequentemente parece consumir seus ícones com a urgência de um fã obsessivo, Rita se ergue como uma espécie de vampira da própria cultura pop. Ela não apenas se alimenta da fantasia; ela a regurgita, a retira da língua dos fãs e a transfigura.


Ao contar a história de uma consulta com o psicanalista Eric von Kasperhauss, em um casarão em ruínas, a rockstar não apenas inventa o espaço, mas o torna um personagem. Como em suas canções, o cenário é mais do que um pano de fundo: ele se torna um campo de batalha, um lugar onde a identidade de Rita — e de todos que a cercam — é fragmentada, desfigurada e finalmente ressignificada. Nesse espaço onírico e vampiresco, ela brinca com os limites da ficção e da realidade, como um mestre de cerimônias que acende e apaga as luzes do espetáculo, revelando e ocultando as verdades em um piscar de olhos.


O Mito do Mito transita entre o mistério e o fanatismo, dois dos pilares que sustentam a própria construção do mito Rita Lee. Ao refletir sobre os fãs e suas obsessões, ela se coloca, com um humor afiado e um olhar atento, em posição de quem observa do palco enquanto o público delira. Em uma das passagens, lembra-se do momento em que presenteou David Bowie com um cristal phantom, e a ironia de ser uma estrela que, simultaneamente, reverencia e é reverenciada é uma das marcas dessa autoficção. Como se, em algum ponto entre o palco e a plateia, os papéis se invertem, e o público se torna o ícone.


Rita não busca conforto, não oferece explicações fáceis. Ela se coloca, por meio de um espelho literário, diante de seus fãs e de sua própria construção, pedindo, sem dizer diretamente, para que a mitologia que a envolve seja observada não como um culto de adoração, mas como uma construção de múltiplas camadas. Rita Lee não é apenas a cantora que conhecemos, mas uma ideia, uma sensação, uma mente disposta a se fragmentar em todos os seus excessos.


O fato de que a obra foi escrita com a colaboração de Guilherme Samora, amigo e editor, não diminui sua essência de monólogo interior. Ao contrário, ela amplifica a sensação de que, mesmo em sua morte, Rita Lee permanece tão viva e sedutora quanto qualquer lenda que, como ela mesma, resiste ao tempo. A literatura, aqui, é um jogo de poder. Não basta ser lida; é preciso ser decifrada. E, talvez, essa seja a verdadeira essência do mito: um convite constante para o jogo de espelhos, onde, ao mesmo tempo, nos encontramos e nos perdemos.


Em última análise, O Mito do Mito não é só sobre a arte de Rita Lee, mas sobre a arte de ser, viver e morrer como mito. Ela manipula, desconstrói e reinventa as narrativas — das suas músicas, dos seus fãs, e até de sua própria biografia — com uma precisão que não deixa espaço para a dúvida: Rita Lee sabia o que fazia. E, em um jogo ainda mais profundo, talvez ela tenha criado a sua própria imortalidade ao se tornar, finalmente, um mito que desafia qualquer tentativa de explicação fácil.


A obra, portanto, ressurge como uma literatura que, por mais que nos envolva, nunca nos dará todas as respostas. Ela apenas nos deixa mais perto do que nunca daquilo que sempre procuramos: a obra sem fim. E é assim, talvez, que Rita Lee, com sua genialidade diabólica, escolheu não apenas se eternizar, mas fazer-nos eternos com ela.


Por Paulo Sales

Globo Livros

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