ENTREVISTA
/ MOUHAMED HARFOUCH, ATOR
Por Paulo Sales
Espetáculo: Meu Remédio
fotos: divulgação
20/04/2025
"A seguir, uma entrevista moldada para um ator que é, ao mesmo tempo, mestre de cerimônias da memória, terapeuta das entrelinhas e pai coruja do teatro — aquele que fala com a alma e escuta com o diafragma"
Mouhamed, meu caro... Quando foi que você percebeu que o seu nome — esse amontoado de consoantes exóticas e identidade afetiva — era mais do que uma assinatura, mas um palco inteiro, à espera de ser encenado?
Mouhamed: Algumas pessoas que me conhecem sempre falavam sobre a ideia de fazer um espetáculo com minhas histórias pessoais. Acho que, em parte, porque sempre levei com muito humor as situações que vivi, principalmente as confusões envolvendo meu nome ou minha origem. Mas ter boas histórias, ou situações divertidas, não basta para costurar um bom espetáculo. É preciso algo que dê sentido. É preciso querer falar sobre algo que vá além dos episódios isolados.
Escrever Meu Remédio nasceu da minha necessidade de falar sobre meu pai, minha origem, e de expressar minha gratidão ao Brasil por ter acolhido minha família e meus antepassados — assim como acolheu tantos outros imigrantes que hoje fazem parte do nosso tecido social e cultural. Todos nós somos fruto dessa mistura, de alguma forma.
Tentei encontrar autores para escrever essa história, mas não tive êxito — e estava num momento da vida em que também queria me produzir. Então, encarei a tela branca do computador e comecei a escrever. Não fazia a menor ideia se daria certo ou se conseguiria chegar a algum lugar. As únicas certezas que eu tinha eram o título, Meu Remédio, e a forma como queria terminar o espetáculo. Mas... como chegar até lá? Esse era o desafio.
Ao abrir esse baú de memórias cênicas que é Meu Remédio, você entrega riso, dor, ironia e ternura misturados como num elixir teatral. Mas me diga: qual foi o "componente ativo" mais difícil de dosar nessa fórmula emocional?
Mouhamed: Você citou exatamente as palavras que mais escuto do público que assiste ao espetáculo: leveza, humor e emoção. As pessoas saem felizes, tocadas, refletindo sobre suas próprias histórias — e isso é muito gratificante. Mas, para chegar até esse ponto, precisei ser absolutamente honesto comigo. Tive que me expor de verdade, sem pudor, e senti muito medo. Esse foi, sem dúvida, o trabalho em que me senti mais exposto e desafiado.
Além de ser um monólogo — o que já é bastante exigente — eu também produzo e escrevo. Ou seja, estava literalmente me jogando aos leões! O ingrediente mais difícil de equilibrar foi a coragem de falar dos meus defeitos, das minhas inseguranças, dos meus medos e da dificuldade em assumir minha história e meu nome. Quis falar da minha inabilidade, não das minhas virtudes.
Fui colocando tudo no papel. Foi quase terapêutico revisitar minha infância, minha adolescência, meus traumas... mas, dessa vez, dando as mãos a eles para juntos construirmos essa peça. Acredito que o equilíbrio dos elementos se estabeleceu de forma orgânica. A natureza é sábia nesse sentido: quanto mais verdadeiros, frágeis ou falhos somos, mais nos comunicamos com o outro. As pessoas se reconhecem — e o riso e a empatia se fortalecem.



Tentei encontrar autores para escrever essa história, mas não tive êxito — e estava num momento da vida em que também queria me produzir. Então, encarei a tela branca do computador e comecei a escrever. Não fazia a menor ideia se daria certo ou se conseguiria chegar a algum lugar.
Mouhamed Harfouch


Existe um momento em cena em que o menino, o adolescente e o homem Mouhamed se cruzam no mesmo facho de luz — como se o tempo se dobrasse como um figurino bem costurado. Você se lembra da primeira vez que esses três conversaram de verdade dentro de você?
Mouhamed: Isso surgiu no processo, quando comecei a me revisitar. O mais difícil foi calar a voz do adulto crítico, chato, que queria desistir da empreitada por medo. Tive que me despir de preconceitos, abandonar a zona de conforto e acreditar que essa história poderia, sim, tocar alguém. Durante o processo, me critiquei muito. Temia que parecesse uma autocelebração, e isso me assustava. Pensava: “Quem vai querer ouvir uma peça sobre isso?” E largava o texto por meses.
Cheguei a desistir umas três vezes. Mas algo sempre me puxava de volta à escrita. Aqui, preciso agradecer imensamente ao meu diretor, João Fonseca, que não me deixou desistir e me incentivou o tempo todo. O resultado foi esse apaziguamento entre minha criança, meu adolescente e meu adulto — que hoje caminham juntos nessa celebração da minha origem, da minha família e da minha herança cultural
Você faz do palco um divã em movimento, com música, trocadilhos e ancestralidade. Mas... e fora dele? Que lugar ocupa o silêncio no seu processo criativo — esse silêncio que, por vezes, cura mais do que o riso?
Mouhamed: Tenho sentido cada vez mais necessidade de silêncio. Gosto de escrever bem cedo, com a casa ainda em silêncio, a cabeça fresca, logo ao acordar — é quando rendo melhor.
Apesar de ser muito comunicativo e até barulhento — tenho banda, trabalho com música, gosto de tocar violão, brincar com as crianças — os ruídos externos passaram a me incomodar. Meu celular não toca há anos. Televisão alta me irrita. Lugares muito barulhentos me cansam. Tento entender se esse incômodo tem a ver com meu processo criativo ou se é só o meu adulto resmungão aparecendo (risos).
Mas, respondendo diretamente: parte do meu remédio está nessa busca silenciosa, interna, vertical — que acredito ser fruto da maturidade. Meu Remédio é também sobre isso.
Por fim, uma pergunta em forma de bula: se pudesse entregar Meu Remédio em forma de receita — com posologia, contraindicações e até aquele aviso “se persistirem os sintomas, procure o teatro mais próximo” — o que estaria escrito na bula assinada por Dr. Harfouch?
Mouhamed: Adorei essa pergunta!
Na bula estaria:
"Consumir sem comedimento e sem contraindicações. Uso recomendado para doses diárias de alegria, reflexão e bem-estar. Se persistirem os sintomas... procure o teatro mais próximo!" (risos)
Pretensioso? Talvez. Mas acredito profundamente que o teatro é um poderoso remédio.