ENTREVISTA
/ ANALU PRESTES, ATRIZ
Por Paulo Sales
Espetáculo: Senhor Diretor - Teatro Poeira
08/05/2025
fotos: divulgação
Através da adaptação dramatúrgica e da atuação visceral de Analu Prestes, sob direção sensível de Silvia Monte, o espetáculo “Senhor Diretor” ganha corpo e presença.
Maria Emília é um espelho desconcertante do Brasil que resiste a mudar. Como foi mergulhar nessa mentalidade tradicionalista e encontrar o equilíbrio entre empatia e crítica?
Analu Prestes: Quando me vi diante de Maria Emília, na leitura dramatizada de Senhor Diretor, fui arrebatada. Era como se ela falasse diretamente comigo — com suas dores contidas, revoltas abafadas, certezas frágeis. Uma mulher de 62 anos, criada sob o jugo de uma educação repressora e valores rígidos, andando sozinha por uma São Paulo que eu também conheço tão bem. E mesmo sendo um retrato de 1977, é impossível não reconhecer nela tantas pessoas que ainda hoje vivem presas ao passado. Todos temos uma Maria Emília por perto — na família, entre os amigos, nos corredores da vida.
Mas ela não é só nostalgia ou rigidez. Maria Emília vê — e sente — as feridas abertas da cidade: a violência, o abandono, o caos urbano, os ruídos de um país em descompasso. Há uma inquietação latente nela, quase desesperada. Ao trazê-la para o palco, eu precisei despir julgamentos. Era preciso viver suas camadas, suas dores, seus medos, com verdade. Entender como uma educação castradora moldou sua sexualidade, seus desejos, sua solidão. Ela não viveu a liberdade, não experimentou os prazeres do próprio corpo — teve as asas podadas antes mesmo de aprender a voar. Ao final, restam perguntas ecoando no silêncio da plateia: E agora? Quem sou eu? É um mergulho sem rede. E é aí que mora a beleza.
O espetáculo se ancora numa estética minimalista, quase simbólica. Como essa escolha dá protagonismo à palavra e transforma o texto em um verdadeiro “teatro da escuta”?
Analu Prestes: Desde a primeira leitura, ficou claro: bastava uma cadeira. Uma única cadeira — giratória, antiga, de madeira — que se desdobrasse em tantas outras: a da sala de aula, do diretor, do ônibus, do cinema, do supermercado, do consultório, até o caixão da amiga Elsa. Uma cadeira que se transforma junto com a personagem. A luz e o som seguem esse mesmo princípio: sugerem, não impõem. O figurino? Também simbólico — a bolsa verde, as luvas, a flor na lapela. Queríamos que o público fosse cúmplice, imaginando os espaços e objetos, como se lessem um conto ao vivo. A força está na palavra. E com Lygia Fagundes Telles, palavra é instrumento de revelação.



Uma mulher de 62 anos, criada sob o jugo de uma educação repressora e valores rígidos, andando sozinha por uma São Paulo que eu também conheço tão bem.
Analu Prestes
O espetáculo mistura humor e desconforto com muita precisão. Como vocês construíram esse equilíbrio e o que ele provoca no público de hoje?
Analu Prestes: Desculpem-me os que desprezam o humor, mas ele é vital. Lygia sabia disso — usava o humor até quando falava da dor. Porque rir é sobreviver. Rir é resistir. No processo de criação, choramos muito, mas também rimos demais. Rimos da velhice, da loucura, da repressão, da hipocrisia — e isso nos aproximou da essência humana da Maria Emília.
Estamos num tempo sem graça, embrutecido, onde a sensibilidade virou quase um crime. O humor — quando bem dosado — é uma ponte para o desconforto. Ele permite que as críticas entrem de maneira mais profunda. E quando a plateia ri... é porque reconheceu algo ali. Quando silencia... é porque algo foi tocado. E nesse vaivém entre o riso e o incômodo, acontece a transformação. É como se, ao assistir Maria Emília, despertássemos — de entre os nossos mortos.
Maria Emília conecta tempos, valores, contradições. O que ela ainda tem a ensinar ou a provocar numa era tão polarizada?
Analu Prestes: Maria Emília é um espelho de muitos. Reflete os preconceitos, os julgamentos automáticos, o medo do novo. Mas também é uma mulher inconformada, que enxerga o caos à sua volta. Sua visão amarga do mundo é também um alerta — sobre o que aceitamos como normal, sobre o que deixamos de sentir. Ela nos provoca a olhar para dentro, com sinceridade.

