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ENTREVISTA 

/ SÍLVIA MONTE, DIRETORA

Por Paulo Sales
Espetáculo: Senhor Diretor - Teatro Poeira

08/05/2025

fotos: divulgação

Ao adaptar Senhor Diretor, conto de Lygia Fagundes Telles, Silvia escolheu um caminho desafiador

Maria Emília é um espelho desconcertante do Brasil que resiste a mudar. Como foi mergulhar nessa mentalidade tradicionalista e encontrar o equilíbrio entre empatia e crítica?

Sílvia Monte: Maria Emília simboliza uma angústia nacional — um Brasil estagnado no tempo, agarrado a falsas certezas que só levam ao vazio. Ela caminha, solitária, entre as ruínas de um país que ainda carrega as marcas dos anos 70: hipocrisia, desilusão política, crescimento caótico. E apesar das décadas passadas, tudo ainda pulsa ali — no falso moralismo, na solidão coletiva, na desesperança que ecoa em sua voz. Maria Emília busca a si mesma, como tantos de nós, em meio ao excesso e à escassez de um país que ainda tropeça em seus próprios nós.

O espetáculo se ancora numa estética minimalista, quase simbólica. Como essa escolha dá protagonismo à palavra e transforma o texto em um verdadeiro “teatro da escuta”?

Sílvia Monte: Tudo foi construído para que nada atrapalhasse o fluxo do pensamento de Maria Emília. A palavra dita, vivida, contraditória, cheia de dúvidas e ironias — ela é a âncora. Ao dar corpo a esse fluxo, criamos imagens internas — psíquicas, coletivas, íntimas. Não queríamos elementos que distraíssem, apenas o essencial. O humor, sim, é esse “estranho” necessário, que abre fendas na dor e permite respirar. Ele está ali, sutil, presente do começo ao fim, nos fazendo rir do trágico. Porque é só assim que conseguimos seguir: rindo e chorando ao mesmo tempo.

O espetáculo mistura humor e desconforto com muita precisão. Como vocês construíram esse equilíbrio e o que ele provoca no público de hoje?

Sílvia Monte: Desculpem-me os que desprezam o humor, mas ele é vital. Lygia sabia disso — usava o humor até quando falava da dor. Porque rir é sobreviver. Rir é resistir. No processo de criação, choramos muito, mas também rimos demais. Rimos da velhice, da loucura, da repressão, da hipocrisia — e isso nos aproximou da essência humana da Maria Emília.

Estamos num tempo sem graça, embrutecido, onde a sensibilidade virou quase um crime. O humor — quando bem dosado — é uma ponte para o desconforto. Ele permite que as críticas entrem de maneira mais profunda. E quando a plateia ri... é porque reconheceu algo ali. Quando silencia... é porque algo foi tocado. E nesse vaivém entre o riso e o incômodo, acontece a transformação. É como se, ao assistir Maria Emília, despertássemos — de entre os nossos mortos.

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Todos nós temos uma carta entalada na garganta: de revolta, desalento, medo, esperança. O teatro permite que essa carta seja lida em voz alta

Sílvia Monte

Lygia dizia que o escritor escreve por quem não pode escrever. Como essa ideia aparece na adaptação, especialmente frente ao Brasil de hoje?

Sílvia Monte: A carta que Maria Emília escreve — ainda que nunca seja enviada — é, na verdade, uma carta coletiva. Todos nós temos uma carta entalada na garganta: de revolta, desalento, medo, esperança. O teatro permite que essa carta seja lida em voz alta. Que o que não foi dito, finalmente ganhe forma. Que o grito silencioso de uma mulher apagada pela história se transforme num convite à escuta. É uma escrita que não se limita à personagem, mas que reverbera em quem assiste. Cada um encontra ali uma frase sua. E isso pode ser revolucionário.

Maria Emília conecta tempos, valores, contradições. O que ela ainda tem a ensinar ou a provocar numa era tão polarizada?

Sílvia Monte: Escolher adaptar Senhor Diretor foi uma escolha política e poética. Vivemos um tempo de intolerância e surdez afetiva. Precisamos de pontes, não muros. E Maria Emília nos ensina justamente isso: que é preciso escutar até o que nos incomoda. Que o preconceito tem raízes, que o medo tem história. E que todos nós, em algum nível, carregamos uma Maria Emília dentro de nós. A arte tem esse poder: de nos fazer ver sem destruir. De nos despertar sem ferir. De nos humanizar. E Maria Emília, com toda sua dor e rigidez, é profundamente humana. É por isso que ela ainda nos comove. E por isso, precisamos ouvi-la.

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