Ritas: Reinado Psicodélico da Rainha do Rock Nacional | Cinema
- circuitogeral
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Rita não era uma. Era muitas

Ritas: Reinado Psicodélico da Rainha do Rock Nacional | Cinema
Rita não era uma. Era muitas. E Ritas, o documentário dirigido por Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley, entende isso melhor do que qualquer verbete enciclopédico. Ao invés de organizar a vida da rainha do rock brasileiro em linha reta, o filme prefere girar em espiral — como a trajetória de quem nunca se enquadrou, nunca se aquietou, nunca se calou. O resultado é uma biografia caleidoscópica, que mais ilumina do que explica, mais sugere do que impõe, e que encontra na própria voz de Rita sua bússola mais fiel e seu norte mais anárquico.
Este não é um documentário que fala sobre Rita Lee. É um documentário que fala com Rita Lee — e muitas vezes, a partir dela. São os seus registros íntimos, suas entrevistas, suas risadas, que constroem a narrativa. E isso, por si só, já é um gesto político: dar a palavra à mulher que por tanto tempo teve sua genialidade reduzida à caricatura. A ausência de depoimentos explicativos (os tais talking heads) não empobrece a obra, mas a liberta do peso institucional que costuma formatar a memória de artistas transgressores. Rita, afinal, nunca quis ser monumento. Quis ser contracultura.
Mas como todo ato de liberdade, esse gesto tem seus limites. Ao optar por centrar a história quase exclusivamente na voz da própria artista, Ritas se afasta de certas zonas de conflito — e com isso, perde um pouco de profundidade. A fase nos Mutantes, por exemplo, é tratada como nota de rodapé, quando poderia (ou deveria) ser um capítulo inteiro. Ali, nos estúdios bagunçados e nos palcos psicodélicos, nasceu a Rita que explodiu convenções — não apenas como vocalista, mas como mente criativa à frente de um grupo que ousou fazer tropicalismo com distorção e escárnio. O filme menciona, mas não mergulha. O silêncio em torno das rupturas com Arnaldo Baptista e os irmãos Baptista soa tanto como cautela quanto como escolha: aqui, o foco é a Rita que se reescreveu, não a que colidiu.
Em compensação, o que se perde em cronologia se ganha em textura. A direção de fotografia e a montagem (assinada pelo próprio Santana) transformam a vida de Rita em uma paleta mutante de colagens visuais. Fotos ganham vida, animações psicodélicas surgem entre arquivos raros, vídeos caseiros surgem como lembranças soltas no tempo. Não há uma estética dominante, mas um patchwork de estilos que ecoa a própria obra de Rita, onde o rock se encontrava com o humor, o nonsense, o erotismo e a crítica social — tudo com brilho, tudo com deboche. A imagem dela cantando nos anos 70 à frente do Tutti Frutti, com homens nos vocais de apoio, é um desses instantes silenciosos que dizem tudo. Nada de explicação didática; só a imagem, contundente. Cinema puro.
A trilha sonora, claro, não é pano de fundo. É carne do filme. Canções como “Ovelha Negra”, “Mania de Você” e “Caso Sério” surgem não apenas como hits, mas como marcos emocionais e afetivos. Cada música ajuda a compor uma Rita diferente — a rebelde, a apaixonada, a irônica, a melancólica. A montagem alterna entre esses estados com uma fluidez quase performática, como se estivéssemos dentro de um show, e não de um filme. Não há palco, mas há performance — e Rita nunca deixou de performar sua liberdade, mesmo nos momentos mais íntimos.
Essa intimidade, aliás, é onde Ritas mais surpreende. Os registros caseiros feitos por Rita nos últimos anos — com seus animais, sua família, sua casa — revelam uma mulher doce, serena, sem perder o brilho nos olhos. Ali, longe do palco, do glamour, das entrevistas, está a Rita que ri do tempo, que fala da morte como quem descreve uma tarde nublada, que celebra a vida com simplicidade. O documentário não tenta romantizar o fim, mas tampouco o dramatiza. Rita segue sendo Rita — até o último frame.
Se há algo que Ritas nos lembra, é que não se compreende uma artista como Rita Lee pela lógica. Ela não foi linha reta, foi labirinto. Não foi coerente, foi muitas. E o filme, com suas idas e vindas, com seus silêncios e cores, abraça essa contradição. Pode frustrar quem espera um documentário tradicional, cheio de ordem e hierarquia. Mas emociona quem entende que Rita foi (e ainda é) um estado de espírito: libertário, múltiplo, insubmisso.
No fim, Ritas não tenta encerrar um mito. Prefere deixá-lo aberto. Começa com Rita cantando, termina com Rita rindo. E entre uma coisa e outra, entrega uma colcha de retalhos cheia de voz, vida, afeto e rock’n’roll. Saímos do cinema com a sensação de reencontro. E com vontade de ouvir Rita de novo, não para entendê-la — mas para continuar a dançar com ela.

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