Gita – Edição Especial: O Disco Profético de Raul Seixas que Espelha o Caos e Ainda Queima em Vinil Vermelho | Música
- circuitogeral
- há 5 dias
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Um apocalipse com trilha sonora

Gita – Edição Especial: O Disco Profético de Raul Seixas que Espelha o Caos e Ainda Queima em Vinil Vermelho | Música
Há discos que são como espelhos quebrados: cada fragmento reflete um ângulo diferente da alma, do tempo e do caos. E há discos como Gita, de Raul Seixas, que não apenas espelham — eles devoram. Devora-se o ouvinte, devora-se o país, devora-se a moral, o tédio e a ordem. Gita não é um álbum. É uma entidade. É um apocalipse com trilha sonora. É o Bhagavad-Gita reencarnado no corpo febril e incendiário de um baiano com sotaque cósmico e humor ácido.
E agora, renascido em vinil vermelho — como sangue, como desejo, como um pacto — ele volta para mastigar tudo outra vez.
Essa edição especial, lançada como celebração dos 80 anos de Raul, não é apenas um relançamento. É uma invocação. A agulha do toca-discos, ao tocar o vinil vermelho, funciona como agulha ritualística sobre um grimório de contracultura, ocultismo pop e genialidade radiofônica. Raul e Paulo Coelho — este ainda em sua fase magista, antes do sucesso editorial — não criaram apenas um disco; criaram uma nova linguagem de poder.
Logo de cara, Super Heróis desfila um carnaval lisérgico de ícones populares. Não há respiro: é preciso rir e pensar, dançar e suspeitar. Porque o humor de Raul nunca é gratuito — ele é veneno com sabor de limonada. Medo da Chuva desmonta o casamento, a posse, a ideia do amor como contrato. Ouvindo hoje, em tempos de rediscussão das normas afetivas, a música continua não apenas atual — continua necessária.
As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor é um trovão de nordestinidade e rock’n’roll — onde o sertão e a distorção de guitarra se fundem num delírio profético. Já Água Viva, com seus arranjos sofisticados, é o momento em que Raul se transfigura em monge — mas um monge tropicalista, lúcido, embriagado de fé e dúvida.
A maior ironia de Gita é que ele, ao mesmo tempo que se ergue como um monumento místico, é profundamente terrestre. Sessão das 10 zomba da própria dor, Moleque Maravilhoso ri da tragédia pessoal, e S.O.S denuncia a farsa social com uma melodia que flerta perigosamente com o plágio — ou com a homenagem, dependendo de quem ouve.
Mas o cerne, o coração devorador do disco, pulsa mesmo em três faixas: Sociedade Alternativa, Trem das 7 e Gita. São essas que formam o tridente místico, o triângulo da insurreição. Sociedade Alternativa é mais do que um hino — é um código genético de liberdade, uma sentença de Crowley traduzida em português e guitarra. Trem das 7 atravessa dimensões com sua simplicidade cósmica, e Gita — a canção — é o momento em que Raul ascende à condição de avatar. Ele não canta: ele profetiza.
O relançamento em vinil vermelho, com toda sua estética ritual e política, não é apenas um presente para colecionadores. É um lembrete. Um alerta. Uma exortação. A capa — Raul armado de guitarra e boina — é um retrato de guerra: não contra pessoas, mas contra a passividade, o conformismo e a mediocridade espiritual.
Sim, há pequenos deslizes, como Um som para Laio — que soa mais como nota de rodapé do que como capítulo — e Loteria da Babilônia, que talvez brilhasse mais se fosse menos ensaio de Borges e mais Raul em fúria. Mas isso é irrelevante. Porque Gita, como obra, como entidade, ultrapassa os limites da coesão. É um disco que pulsa, sangra, se contorce, respira — e continua gritando.
“Gita” é, foi e será o disco que atravessa os tempos como um cavalo de fogo. Em 1974, era uma ameaça. Em 2025, é uma profecia cumprida. E nesta edição especial, ele reaparece para lembrar que o rock também pode ser escritura sagrada — e que Raul Seixas, entre o delírio e a lucidez, continua sendo o profeta que a nação insiste em ignorar, mas que ainda poderá salvar nossa alma perdida.
Não pare na pista. Ele ainda está te chamando.

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