O Retorno – Sangue, glória e silêncio após o inferno
- circuitogeral
- 24 de ago.
- 2 min de leitura
Uma obra cortante, embebida em sangue e melancolia
O Retorno – Sangue, glória e silêncio após o inferno
Por mais que o título sugira redenção ou celebração, "O Retorno" não nos concede conforto. É uma obra cortante, embebida em sangue e melancolia, que evoca o espírito de Homero, mas arranca dele os deuses e monstros, deixando apenas a carne, a dor e a ferrugem da alma humana. Sob a direção implacável de Uberto Pasolini, este drama mitológico transforma a última parte da Odisseia numa elegia de aço e silêncio, onde a violência não é heróica – é inevitável.
Ralph Fiennes, soturno e espectral, encarna Odisseu como um homem quebrado, mais próximo de um fantasma do que de um rei. Sua presença é uma sombra que rasteja pelas ruínas de Ítaca, desconfiando da própria humanidade.
Em cada olhar, Fiennes nos lembra que vinte anos de guerra não deixam apenas cicatrizes – eles corrompem o sentido de lar e justiça. A cena em que ele finalmente revela sua identidade não é marcada por música triunfal, mas por olhos arregalados e lâminas afiadas.
A ausência do sobrenatural – uma escolha ousada dos roteiristas John Collee e Edward Bond – torna o filme ainda mais cruel. Sem deuses para culpar, a violência é humana, crua, sangrenta. As mortes dos pretendentes, um a um, são filmadas com uma brutalidade quase cerimonial, como se Pasolini nos dissesse: "Aqui jaz o mito – e foi o homem quem o matou". As batalhas no salão de banquetes são verdadeiras execuções estilizadas, onde o vermelho do sangue tinge o mármore como um quadro de Caravaggio em movimento.
Juliette Binoche oferece uma Penélope em frangalhos, endurecida pela espera e pelas constantes ameaças. Não é mais a rainha paciente dos versos de Homero, mas uma mulher que aprendeu a sobreviver num ninho de serpentes. Seu reencontro com Odisseu é agridoce – não há choro ou beijos apaixonados, apenas o peso do tempo e da ausência pairando entre eles.
Visualmente, o filme é uma tapeçaria de sombras e poeira. Pasolini cria uma Ítaca devastada, onde as colunas rachadas e os salões silenciosos lembram túmulos. A trilha sonora é quase inexistente, substituída pelo som áspero dos passos de Odisseu, o tilintar de armas, e o gorgolejar sufocado do sangue.
"O Retorno" não é um épico clássico. É uma antiepopeia. Um mergulho brutal na alma de um guerreiro que já viu o inferno – e o trouxe consigo. Sem monstros marinhos, mas com monstros interiores. Sem intervenção divina, mas com justiça sangrenta.
Ao final, não há catarse. Apenas a constatação de que todo retorno é, na verdade, uma continuação da guerra – agora, dentro de casa.
Nota: 9/10
Pela coragem de revisitar um clássico sem se esconder atrás do mito, e pela beleza sombria de um filme que sangra honestidade em cada frame.
Comentários