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Nastácia: uma tragédia russa servida com ironia brasileira e vergonha alheia estrutural

O caos é método

Nastácia

Nastácia: uma tragédia russa servida com ironia brasileira e vergonha alheia estrutural


Desde os primeiros segundos do espetáculo Nastácia, a direção de Miwa Yanagizawa deixa claro que o corpo da protagonista não é apenas corpo; é denúncia, boletim de ocorrência e testemunha ocular da desgraça. Antes que qualquer palavra seja dita, a cena já está cheia de respirações trêmulas, silêncios densos e movimentos que claramente não passaram no RH emocional do patriarcado.


A protagonista, vivida por Flávia Pyramo, atravessa o palco como quem está a dois segundos de jogar tudo para cima e efetivamente joga. Sua Nastácia é tão intensa que qualquer pessoa que já sobreviveu a um jantar de família reconhece aquele olhar fixo de se alguém falar mais uma bobagem, eu toco fogo nessa sala. No caso dela, é literal. Ela taca fogo no dinheiro e, com isso, incinera séculos de expectativas alheias. Se mais espetáculos fossem assim, talvez o país tivesse menos coaches motivacionais e mais plateias transformadas.


Os dois cavalheiros que compõem o triângulo dramático, Marcio Nascimento como Gánia e Paulo Giannini como Totski, não são exatamente cavalheiros. Um é covarde com ambição; o outro é poderoso e parece nunca ter pedido desculpas na vida. Se fossem personagens de um vídeo cômico, seriam aqueles homens que dizem eu respeito muito as mulheres e, logo em seguida, cometem abusos emocionais antes do almoço. A plateia não sabe se assiste ou se chama a polícia.


A dramaturgia de Pedro Brício faz o tempo pular de um lado para o outro, como quem conta uma história inteira, mas começa pelo fim, volta para o começo, lembra de um detalhe, esquece outro e solta um não, pera, isso foi antes ou depois? Aqui, isso funciona perfeitamente. O caos é método.


Visualmente, o espetáculo parece fruto de uma colaboração entre designers e espíritos inquietos. Ronaldo Fraga cria um cenário cheio de molduras vazias que observam o público como tias fofoqueiras em festa. Cao Guimarães projeta lembranças na parede como pop-up emocional que ninguém pediu. A iluminação de Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal revela segredos com a mesma delicadeza de um funcionário abrindo o microfone errado em reunião de trabalho. A trilha de Gabriel Lisboa pulsa como se alguém estivesse controlando a frequência cardíaca da plateia. A direção de movimento de Tuca Pinheiro faz cada gesto parecer um pedido urgente de socorro ou um ataque de sinceridade.


O mais impressionante é que tudo isso se articula com precisão. Não há alívio fácil, não há conforto, mas há humor. É o humor inevitável de perceber que estamos rindo de estruturas sociais que, na verdade, deveriam nos deixar alarmados. A peça se sustenta nesse equilíbrio: rir para suportar, rir para expor, rir porque, sinceramente, se não rir, desaba.


Nastácia não é uma história; é um espelho desagradavelmente honesto. É a lembrança incômoda de que a violência contra o corpo feminino não ficou presa na literatura russa, nem em séculos passados, nem em tramas distantes. Ela está ali, organizada, institucionalizada, sorrindo de canto de boca enquanto oferece champanhe na festa de aniversário da protagonista.


E ainda assim, o que fica não é a derrota. É o gesto de recusar, incendiar, rasgar o roteiro imposto e fazer isso olhando diretamente para o público, como quem diz: Se você está desconfortável, ótimo. Era exatamente isso.

Uma peça forte, desconcertante e surpreendentemente engraçada, daquele tipo de humor que só surge quando a verdade é tão insuportável que o riso se torna um ato de sobrevivência.


Por Paulo Sales


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